terça-feira, 18 de setembro de 2007

3.3 - De que forma o homem se relaciona com seu mito?


"é comum, no meio rural, os moradores, quando não conseguem algo racionalmente, buscarem no sobrenatural o reforço para a realização dos seus intentos”. 1

A epígrafe acima, parece ter sido muito bem utilizada por Carlos Alberto Soffredini em sua peça teatral, bem como por André Klotzel, que dirigiu e produziu em 1985 o filme “A Marvada Carne”.
Nesse filme, a personagem Carula, interpretada por Fernanda Torres, mora num arraial e reza todos os dias para Santo Antônio, para que ele lhe arranje um marido. Um dos bons momentos do filme é a maneira como Carula se relaciona com o seu santo protetor, levando-o inclusive para a beira do rio quando ela vai lavar a roupa, e sua vontade de encontrar um marido chega a tal ponto que por raiva, ela o afoga, e num outro acesso de raiva, ela o atira para fora da janela, e é nesse momento, que surge o personagem Nhô Quim, interpretado por Adilson Barros, que viria a ser o seu tão desejado marido.
Algumas cenas do filme, principalmente as cenas de Fernanda Torres com o santo, são mostradas após alguns versos de uma música. O primeiro verso é cantado assim:

“Meu Santo Antônio, venerado
meu santinho namorado
encontrar o que está perdido
me ajudai encontrar marido”.

E ela então começa a falar com o santo e a cena mostra a personagem em cima de uma árvore arrancando flores para dar ao santo:

“Ai meu Deus, olha aqui meu santinho, não é uma lindura? Fala a verdade, ocê bem que viu a jurema2

que deu pra apanhar, num viu? Entonce, agora num está também na hora do Senhor cumprir com a sua obrigação de santo?”


Antes da cena do poço, vem então o segundo verso cuja letra é essa:


“Eu fui no mato, cortar lenha
Santo Antônio me chamou
Se Santo que é Santo chama
Que fará um pecador”.

E Carula (Fernanda Torres) indaga o santo do porquê de tanta demora:

“Afinal de contas, meu santinho, que ocê tá esperando, meu santo? Tá esperando que eu fique feia, feia que nem o urutau? Pa mó di nenhum perário di atoa querê ponhá os óio por riba deu? É, é santinho. Ara!

Logo em seguida, vem o terceiro e último verso dessa música, cantado assim:

“Santo Antônio me piscou
De cima do seu altar
Mai óia o maluco do santo
Querendo me namorar”.

E a personagem então, já impaciente com aquela demora, fala assim:

“Eu não vou mais lhe trata com essa melúria3

toda não, viu santinho! De hoje em diante você vai saber bem quem é essa fia de meu pai! Qué vê?”

E a personagem afoga o santo na água com requintes de crueldade, chegando até mesmo a assobiar, e depois de algum tempo traz o santo à tona, e este começa a borbulhar, e em seu semblante uma cara de quem está com raiva.
Como o objeto do desejo dela não vem, ela então vai até a pequena capela e começa a dizer:

“Óia aqui o que eu chego a lhe dizer não tem vortinha, na ponta não, viu? Vai e fica. Eu já tô, meu santo pras turina4 com ocê, tá entendendo? Eu já tô pras turina com seu ar de tolo, com esses seus óios granado, aí. E marido que é bão, meu santo, neca! Ocê qué sabe do que mai? Ocê qué sabe? Oi qui meu santinho! Meu santinho! Abasta desta tua luzinha”.

E começa a apagar as luzes das velas.

“Abasta de toda essa luzinha aqui ó, que eu venho acendendo por estes dois ano, viu meu santo? Abasta de suas florzinha, viu? Chega!”

E começa a despedaçar todas as flores e apagar todas as velas. Então ela toma de uma raiva contida e...

“Chega! Ai mo Deu me segura! E abasta de Santo Antoninho, tumbém, viu?”

E acaba atirando o santo com toda a raiva para fora do seu quarto através da janela, fechando a mesma. Finalmente o santo atirado pela janela vai cair na cabeça de Nhô Quim, interpretado por Adilson Barros, que vinha chegando ao arraial, e ele resolve devolver o santo. Por um buraco na parede Carula (Fernanda Torres), fica feliz com a chegada do intruso e resolve agradecer a ajuda do santo:

“Vizeu meu santinho por tudo me arranjado. Gradecida meu santinho. Gradecida pelo marido que me arrumado. Bom, é bem verdade que eu tinha lhe pedido um mocetão di danado di bonito e sacudido, né mermo? Esse Quim aí, que ocê... Não esse Quim é um pombinho. Gradecida meu santinho estou muito feliz com tudo, muito obrigada, gradecida, gradecida, gradecida, gradecida. Bom, marido eu já arrumei, né? Agora só tá fartando mermo, ele me pedir, mas isso, deixe comigo”.

Diante disso, ela então resolve procurar Nhô Quim, tentando chamar sua atenção, mas este, nem lhe dá atenção. Chateada ela desabafa com o santo:

“A curpa é sua, viu? Me arranja o dito cujo e já cuida de tá mai mió de bão, né? E eu que me arranje suzinha a mó de laçá o guarampa”.

Enfim a personagem Carula acaba tendo a ajuda da personagem Nhá Tomaza (Lucélia Machiavelli) e começa então a bolar um plano para conquistar a atenção de Nhô Quim. Na cena do riacho, as duas começam a conversar sobre o casamento e Nhô Quim ao ouvir que se Carula casar o pai vai lhe fazer uma festança e matar um boi, este então cumprimenta Carula com um sorriso e ela devolve o sorriso totalmente derretida para ele.
Até que finalmente Nhô Quim pede a mão de Carula, mas para isso precisa fazer umas provas. Como as provas não acabam, Nhô Quim e Carula resolvem fugir para casar na cidade, tendo a cumplicidade dos pais dela. Na cena da fuga, Nhô Quim resolve bater na janela chamando por Carula, mas ao bater na janela errada, o pai dela, Nhô Totó (Dionísio Azevedo), sussurra dizendo: “é a outra”, comunicando que a janela da filha era a seguinte.
Na cidade Nhô Quim, resolve vender a cabra, comprando comida e as alianças. Vão a um cartório e quando o Oficial os declara marido e mulher, Carula com um sorriso desmaia de emoção, afinal tinha conseguido o que ela mais queria, um marido.


1 - Alceu Maynard Araújo, Folclore Nacional, VII, Melhoramentos, 1964, p. 17 – In: Comunicações & Problemas, vol. 1, n. 1, Recife, ICINFORM, 1965, p. 9-15.
2 - A palavra foi pronunciada no sentido de “trabalheira”.
3 - [Cruz. De mel com lamúria?] S. f. 1. Pop. Lamentação habitual; queixa astuciosa. 2. Ato ou palavra manhosa, untuosa. 3. Brás., S. Agrado, lisonja. S. 2.g. 4. Pop. Pessoa dissimulada. – Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque de Hollanda. Pg. 915.
4 - [Do lat. Turinu]. Adj. Relativo a incenso. 2 – Adj. e s.m. Diz-se de, ou espécime de uma variedade portuguesa de gado bovino de uma raça holandesa. – Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Aurélio Buarque de Hollanda. Pg. 1432..
5 - Guarampa – O mesmo que “sujeito”. Seu verbete não foi encontrado no Dicionário da Língua Portuguesa.

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